O Mistério da Regata (Uma Acidente e outras histórias)

 

O Mistério da Regata
Agatha Christie - Detetive Parker Pine

O Sr. Isaac Pointz tirou o charuto da boca e comentou com aprovação:

— Lugarzinho bonito, esse.

Tendo assim concedido o seu beneplácito ao porto de Dartmouth, recolocou o

charuto na boca e olhou em torno com o ar de um homem satisfeito consigo

mesmo, seu aspecto, o ambiente e a vida em geral.

Quanto ao primeiro desses itens, o Sr. Isaac Pointz era um homem de

cinquenta e oito anos, de boa saúde, apenas com uma ligeira deficiência das vias

biliares. Não era exatamente gordo, mas confortavelmente constituído. Embora a

roupa apropriada para velejar que usava no momento não favorecesse de modo

especial a homens de meia idade com uma tendência para a corpulência, o Sr.

Pointz estava elegantíssimo, correto em todos os detalhes. Sob a aba do boné o

seu rosto moreno, levemente oriental, ostentava um sorriso amplo.

Quanto ao ambiente, incluía os seus convidados: seu sócio Leo Stein, Sir

George e Lady Marroway, um homem de negócios americano, o Sr. Samuel

Leathern e sua filha Eve, ainda uma colegial, a Sra. Rustington e Evan Llewelly n.

O grupo acabara de descer do iate do Sr. Pointz, o Merrimaid. Tinham visto a

regata de manhã e agora desciam para desfrutar um pouco das atrações do

parque de diversões: O Homem Aranha, A Mulher Gorda, O Tiro ao Alvo e Os

Carrosséis. Foi Eve Leathern quem evidentemente mais se deleitou com esses

prazeres, e quando finalmente o Sr. Pointz sugeriu que era tempo de seguirem

para o Roy al George para o jantar, a única voz dissidente foi a sua.

— Oh, Sr. Pointz! Eles têm uma cigana de verdade e eu queria tanto ver a

minha sorte!

O Sr. Pointz duvidava muito da autenticidade da tal cigana, mas anuiu com

indulgência.

— Eve está maluquinha pelo parque — desculpou-a o pai — mas não deve

dar-lhe atenção se deseja ir agora.

— Há muito tempo — tornou condescendente o Sr. Pointz. — Deixemos a

jovem divertir-se. Vamos aos dardos, Leo.

— Quem fizer acima de vinte e cinco pontos ganha um prêmio — anunciava o

homem da barraca dos dardos numa voz anasalada.

— Aposto cinco libras que faço mais pontos do que você — desafiou Pointz.

— Feito — concordou Stein com entusiasmo, e logo os dois homens

empenharam-se alegremente na disputa.

Lady Marroway cochichou para Evan Llewelly n:

— Eve não é a única criança do nosso grupo.

Llewelly n sorriu distraidamente. Estivera absorto em seus pensamentos o dia

todo. Umas duas vezes dera respostas que pouco tinham a ver com as perguntas.

Pamela Marroway afastou-se dele e dirigiu-se ao marido.

— Aquele rapaz está preocupado com alguma coisa.

— Ou com alguém... — acrescentou Sir George lançando um olhar a Janet

Rustington.

Lady Marroway franziu ligeiramente a testa. Alta, vestia-se com requinte e as

unhas escarlates repetiam a tonalidade dos brincos de coral que trazia nas

orelhas. Os olhos eram escuros e atentos. As maneiras de Sir George eram as de

um descuidado e jovial cavalheiro inglês, mas seus vivos olhos azuis tinham a

mesma expressão alerta dos da esposa.

Isaac Pointz e Leo Stein negociavam com diamantes em Hatton Garden. Já Sir

George e Lady Marroway vinham de um mundo bem diverso, Antilhas e Juanles-

Pins, golfe em St.-Jeande-Luz, e invernos na ilha da Madeira.

Aparentemente eram como os lírios do campo que não labutam nem tecem,

porém talvez isso não fosse inteiramente verdade. Há diversas formas de labutar

e tecer.

— Aí vem a garota de volta — disse Evan Llewelly n à Sra. Rustington.

Llewelly n era um jovem moreno com um ligeiro ar de lobo esfaimado que as

mulheres achavam muito atraente. Contudo era difícil dizer se a Sra. Rustington

também era dessa opinião. Não era do tipo que exterioriza seus sentimentos.

Casara-se cedo, mas o casamento fora um desastre e terminara em menos de

um ano. Desde então fora difícil saber o que Janet Rustington pensava a respeito

de alguém ou de qualquer coisa, pois suas maneiras eram sempre as mesmas,

encantadoras, mas distantes.

Eve Leathern aproximou-se aos pulos com os cabelos louros e lisos dançando

em torno dos ombros. Aos quinze anos era ainda uma criança desajeitada

embora cheia de vitalidade.

— Vou-me casar com dezessete anos com um homem muito rico! — ela

exclamou ofegante. — Vamos ter seis filhos, as terças e as quintas-feiras são os

meus dias de sorte, devo vestir-me sempre de azul ou verde, as esmeraldas

constituem a minha pedra de sorte e...

— Vamos, vamos, já está na hora — interveio o pai.

O Sr. Leathern era um homem alto e loiro com uma expressão desanimada e

ar de quem sofria de dispepsia.

O Srs. Pointz e Stein voltavam dos dardos. O primeiro ria enquanto o

companheiro apresentava um ar de aborrecimento.

— Foi apenas uma questão de sorte — dizia este.

O Sr. Pointz bateu alegremente no bolso.

— É, mas eu ganhei as cinco libras. Foi perícia, meu amigo, pura perícia. Meu

velho era um jogador de dardos de primeira classe. Bem, pessoal, então vamos

indo. Leram a sua sorte, Eve? Disseram-lhe para tomar cuidado com um homem

moreno?

— Com uma mulher morena — retificou Eve. — Uma mulher ligeiramente

estrábica que me pode fazer muito mal se eu lhe der uma chance. Vou me casar

quando tiver dezessete anos...

Prosseguiu tagarelando alegremente enquanto o grupo se dirigia para o Roy al

George.

O previdente Sr. Pointz encomendara o jantar com antecedência e um

prestimoso garçom conduziu-os a um reservado no primeiro andar onde uma

mesa redonda já estava preparada. Uma grande janela oitavada abria para a

praça do cais. Até eles vinha o alvoroço do parque e a cantilena estridente dos

três carrosséis que tocavam canções diferentes.

— É melhor fechá-la se quisermos ouvir nossas vozes — propôs o Sr. Pointz

executando ele mesmo a sua sugestão.

O grupo distribuiu-se em torno da mesa enquanto o Sr. Pointz sorria

beatificamente aos seus convidados. Sentia que estava sendo magnânimo e

gostava disso. Seus olhos percorreram lentamente o grupo. Lady Marroway, uma

bela mulher, não era bem o artigo genuíno. Sabia perfeitamente disso, ciente de

que aquilo que toda a vida chamara de la crême de la crême não se envolveria

com os Marroway s, mas então essa mesma crême de la crême ignorava

totalmente a sua própria existência. De qualquer forma, Lady Marroway era

uma mulher chiquérrima e ele não se importava se ela roubava no bridge. Já

quando o espertinho era Sir George, o caso não era tão agradável. O sujeito tinha

um olhar velhaco e era um descarado arrivista, mas não levaria a melhor sobre

Isaac Pointz. Ele cuidaria disso. O velho Leathern não era um mau sujeito.

Falastrão e prolixo como a maioria dos americanos, gostava de desfiar histórias

intermináveis. Ainda por cima tinha o desconcertante costume de pedir

informações precisas. Qual era a população de Dartmouth? Em que ano fora

construída a Escola Naval? E aí por diante. Na certa achava que o seu anfitrião

era um almanaque ambulante. Eve, uma garota simpática e alegre. A voz era

muito estridente, mas tinha a cabeça no lugar. Uma menina esperta.

O jovem Llewelly n estava quieto demais, devia estar preocupado com alguma

coisa. Falta de dinheiro, provavelmente. Esses escritores estão sempre quebrados.

Talvez estivesse apaixonado por Janet Rustington. Uma mulher simpática,

atraente e inteligente também, que não alardeava sua erudição. Também era

escritora e intelectual, mas ninguém adivinharia ouvindo-a conversar. O velho

Leo! Não estava ficando nem um pouquinho mais magro ou mais jovem.

Beatificamente ignorante do que o seu sócio estava pensando a seu respeito, o

Sr. Pointz interrompeu o Sr. Leathern para dizer-lhe que as sardinhas provinham

de Devon e não de Cornwall, e preparou-se para saborear a refeição.

— Sr. Pointz — principiou Eve quando os garçons se retiraram após servir a

cavala.

— Sim, minha jovem?

— O senhor tem aí aquele brilhante grandão? Aquele que nos mostrou ontem à

noite? Disse que andava sempre com ele.

O Sr. Pointz deu uma risadinha.

— E ando mesmo. É a minha mascote. Sim, tenho-o comigo.

— Não acha isso muito perigoso? Nessa confusão toda da feira alguém poderia

tê-lo roubado do senhor.

— Não roubam, não — tornou o Sr. Pointz. — Deixe comigo.

— Mas podem tentar — insistiu Eve. — Vocês também têm gangsters aqui na

Inglaterra, não têm?

— Eles não roubarão a minha Estrela da Manhã — disse o Sr. Pointz. — Para

começar, trago-a num bolso interno especial. E de qualquer forma, o velho

Pointz sabe muito bem o que está fazendo. Ninguém vai roubar a Estrela da

Manhã.

Eve riu.

— Hum! Pois eu aposto que poderia roubá-la!

— E eu aposto que não pode! — replicou o Sr. Pointz piscando para ela.

— Bem, eu acho que posso. Estava pensando nisso ontem à noite na cama,

depois que o senhor nos mostrou a pedra. Acho que achei um jeitinho de ficar

com ela.

— E que jeitinho é esse?

Ela inclinou a cabeça para um lado balançando os cabelos louros.

— Não lhe vou contar agora. Mas quanto quer apostar que eu poderia?

Os pensamentos do Sr. Pointz voaram à sua juventude.

— Meia dúzia de pares de luvas — disse ele.

— Luvas — replicou Eve com uma careta. — Quem liga para luvas?

— Bem... e de meias de seda, você gosta?

— Ora se gosto! Correu o fio do meu melhor par hoje de manhã.

— Muito bem, então. Meia dúzia de pares de meia da melhor qualidade.

— Ah! — fez Eve deliciada. — E quanto ao senhor?

— Preciso de uma bolsa nova para fumo.

— Certo. Está apostado. Mas não conte com a sua bolsa de fumo. Agora vou

dizer-lhe o que tem a fazer. Quero que nos mostre novamente a pedra como fez

ontem à noite...

Ela calou-se com a entrada de dois garçons que vieram retirar os pratos.

Quando todos começaram a servir-se de galinha, o Sr. Pointz advertiu-a:

— Lembre-se, minha jovem, que num caso de roubo real eu chamaria a

polícia e todos seriam revistados.

— Eu não me importo. Mas o senhor não precisa ser tão realista, Lady

Merroway ou a Sra. Rustington podem-me revistar o quanto o senhor desejar.

— Bem, então está combinado — disse o Sr. Pointz. — Será que você está

treinando para ser uma famosa ladra de jóias?

— Até que a idéia não seria má, se a profissão fosse compensadora.

— Seria compensadora, sem dúvida, se conseguisse roubar a Estrela da

Manhã. Mesmo relapidada, a pedra valeria mais do que trinta mil libras.

— Nossa! — exclamou impressionada. — Quanto é isso em dólares?

Lady Marroway soltou uma exclamação.

— E o senhor carrega consigo uma pedra desse valor? — ela censurou-o. —

Trinta mil libras... — os seus cílios estremeceram sob o rímel.

A Sra. Rustington disse com suavidade:

— É muito dinheiro... E há também o fascínio da pedra. É belíssima.

— Não passa de um pedaço de carbono — replicou Evan Llewelly n.

— Sempre ouvi dizer que o receptador é o grande problema dos ladrões de

joia — comentou Sir George. — Eles ficam com a parte do leão.

— Vamos, vamos começar logo — insistiu Eve excitada. — mostre-nos o

diamante e repita o que nos disse ontem à noite.

O Sr. Leathern interveio com sua voz profunda e melancólica:

— Peço desculpas pelo comportamento de minha filha. Às vezes ela se

excede...

— Chega, papai — disse Eve. — E agora, Sr. Pointz...

Sorrindo o negociante enfiou a mão dentro da jaqueta e tirou um objeto que

faiscava em sua palma aberta.

Um enorme brilhante...

Em tom formal o Sr. Pointz repetiu o mais aproximadamente possível a sua

fala da noite anterior a bordo do Merrimaid.

— Será que os senhores querem dar uma olhada nisto? É uma pedra

invulgarmente bela. Batizei-a de A Estrela da Manhã. Ela tornou-se a minha

mascote. Levo-a comigo a toda parte. Gostariam de vê-la?

Entregou a pedra a Lady Marroway que elogiou a sua beleza e passou-a ao Sr.

Leathern que disse em tom muito artificial antes de entregá-la ao Llewelly n:

— Muito boa, muito boa mesma.

Neste momento entraram os garçons e a encenação foi interrompida. Quando

eles se retiraram Evans disse:

— É uma bela pedra.

Em seguida entregou-a a Leo Stein que não se deu ao trabalho de fazer um

comentário, passando-a imediatamente a Eve.

— Que maravilha! — exclamou a garota numa voz muito afetada. — Oh! —

exclamou consternada quando a pedra escorregou de sua mão. — Deixei-a cair!

Eve afastou a cadeira e abaixou-se para procurar debaixo da mesa. Sir

George, à sua direita, curvou-se também. Na confusão um copo estilhaçou-se no

chão. Stein, Llewelly n e a Sra. Rustington se incorporaram à busca. Por fim

Lady Marroway também se abaixou.

Apenas o Sr. Pointz não participou da comoção geral. Permaneceu sentado

saboreando seu vinho com um sorriso sardônico.

— Oh, meu Deus! — exclamou Eve ainda como se estivesse representando.

— Que horror! Onde é que ela pode ter ido parar? Não consigo encontrá-la em

parte alguma!

Um por um seus auxiliares levantaram-se.

— A pedra realmente desapareceu, Pointz — disse Sir George sorrindo.

— Executado com maestria — observou o Sr. Pointz com um gesto de

aprovação. — Você daria uma ótima atriz, Eve. O problema agora é descobrir se

a pedra está em seu poder ou se a escondeu em algum lugar.

— Podem revistar-me — declarou Eve em tom dramático.

O olhar do anfitrião dirigiu-se a um grande biombo que havia a um canto da

sala. Ele fez um gesto em direção do mesmo e olhou para Lady Marroway e a

Sra.Rustington.

— Se as senhoras quiserem fazer-me o obséquio...

— Ora, sem dúvida — anuiu Lady Marroway sorrindo. As duas mulheres se

levantaram.

— Não tenha receio, Sr. Pointz — acrescentou Lady Marroway. — Faremos

uma revista completa.

As três se retiraram para trás do biombo.

A sala estava quente. Evan Llewelly n abriu a janela. Embaixo um jornaleiro ia

passando. Evan atirou-lhe uma moeda e o homem jogou-lhe um jornal.

Llewelly n desdobrou-o.

— A situação na Hungria não está nada boa — comentou.

— É o pasquim local? — perguntou Sir George. — Estou interessado num

cavalo que deve ter corrido hoje em Haldon, o Natty Boy.

— Leo, tranque a porta — pediu o Sr. Pointz. — Não queremos que estes

malditos garçons fiquem entrando e saindo até acabar essa história.

— Natty Boy ganhou. Pagou três por um — disse Evan.

— Hum, podia ter sido melhor — resmungou Sir George.

— Quase que só tem notícias da regata — comentou Evan passando os olhos

pela folha.

As três jovens mulheres saíram detrás do biombo.

— Nem sinal da pedra — anunciou Janet Rustington.

— Acredite em mim, ela não a tem — declarou Lady Marroway.

O Sr. Pointz acreditava nela de boa vontade. Pelo tom cortante e implacável de

sua voz, não tinha dúvidas de que a busca fora completa.

— Ei, Eve, você não a engoliu, não foi? — perguntou ansioso o Sr. Leathern.

Poder-lhe-ia fazer mal.

— Eu não a vi fazer tal coisa — retrucou Leo Stein em voz baixa. — Estava

observando-a. Ela não colocou nada na boca.

— Eu não poderia engolir uma coisa grande e pontiaguda como aquela pedra

— disse Eve, e colocando as mãos nos quadris olhou para o Sr. Pointz. — E agora,

garotão? — perguntou.

— Fique aí onde está e não se mova — respondeu o negociante.

Os homens tiraram tudo de cima da mesa e viraram-na de cabeça para baixo.

O Sr. Pointz examinou-a centímetro por centímetro, e em seguida transferiu sua

atenção para a cadeira em que Eve estivera sentada e as que ficavam ao lado.

A busca foi a mais completa e minuciosa possível. Os cinco homens e as duas

mulheres empenharam-se a fundo enquanto Eve Leathern, em pé junto à parede

perto do biombo, ria gostosamente.

Cinco minutos depois o Sr. Pointz levantou-se com um gemido e desalentado

limpou os joelhos das calças. Sua imaculada elegância fora algo danificada.

— Eve, tiro-lhe o chapéu — disse ele. — Você é a mais estupenda ladra de

jóias que já encontrei. Não consigo saber o que fez com a pedra. No meu

entender, se ela não está em seu poder, deveria estar aqui na sala. Reconheço a

minha derrota.

— Ganhei as meias? — perguntou Eve.

— São todas suas, minha jovem.

— Eve, meu bem, onde você a escondeu? — indagou com curiosidade a Sra.

Rustington.

A garota adiantou-se.

— Vou-lhes mostrar. Ficarão loucos de raiva.

Ela dirigiu-se à mesa de serviço onde os objetos da mesa de refeição haviam

sido empilhados sem cuidado e apanhou sua pequena bolsa preta de noite.

— Está bem aqui, debaixo de seus narizes. Bem aqui... Sua voz alegre e

triunfante extinguiu-se de repente. — Oh! — ela exclamou. — Oh!...

— O que há, querida? — perguntou o pai.

Eve murmurou:

— Sumiu... Não está aqui...

— O que aconteceu? — perguntou Pointz adiantando-se. Eve virou-se para ele

num ímpeto.

— Escute. Essa minha carteira tinha uma grande pedra falsa no centro do

fecho. Ela caiu ontem à noite, e quando o senhor nos mostrou o diamante, notei

que eram aproximadamente do mesmo tamanho. Foi aí que me ocorreu a idéia

para um roubo. Pensei que poderia encaixar a pedra na armação e prendê-la

com plasticina. Tive a certeza de que ninguém iria notá-la ali. E foi o que fiz esta

noite. Deixei-a cair primeiro, em seguida me abaixei com a bolsa na mão e um

pedaço de plasticina que trazia comigo, depois coloquei a bolsa sobre a mesa e

continuei fingindo procurar a pedra. Lembrei-me daquele conto de Poe, A Carta

Roubada, e coloquei o brilhante bem debaixo do nariz de todo mundo, ocupando o

lugar de uma reles imitação. E o meu plano era bom — ninguém percebeu!

— Será mesmo? — murmurou o Sr. Stein.

— O que o senhor disse?

O Sr. Pointz pegou a bolsa, examinou o buraco vazio em que ainda se via um

fragmento de plasticina, e disse devagar:

— Poderia ter caído no chão. É melhor procurarmos novamente.

Repetiram a busca que desta vez foi estranhamente silenciosa. A atmosfera na

sala era tensa. Por fim, um a um, todos desistiram da busca e começaram a

entreolhar-se.

— A pedra não está aqui na sala — declarou Stein.

— E ninguém saiu daqui — acrescentou significativamente Sir George.

Houve um momento de silêncio. Eve explodiu em lágrimas e o pai deu-lhe

uma pancadinha afetuosa no ombro.

— Não chore, querida — disse ele sem jeito.

Sir George virou-se para Leo Stein.

— Sr. Stein, há pouco murmurou qualquer coisa baixinho. Disse que não foi

nada quando lhe pedi para repetir. Mas na realidade ouvi suas palavras. A Srta.

Eve acabara de dizer que ninguém percebera onde colocara o brilhante, e o

senhor murmurou: “Será mesmo?”. Temos de enfrentar a possibilidade de que

alguém percebeu, alguém que está agora nesta sala... Sugiro que a única coisa

decente e honrada a fazer é todos os presentes submeterem-se a uma revista. O

brilhante não pode ter saído desta sala.

Ninguém era capaz de sobrepujar Sir George quando resolvia representar o

papel de velho cavalheiro inglês. Sua voz vibrava de indignação e sinceridade.

— Que coisa mais desagradável — disse o Sr. Stein com um ar infeliz.

— A culpa é minha — soluçou Eve. — Eu não pretendia...

— Anime-se, criança — consolou-a bondosamente o Sr. Stein. — Ninguém a

está culpando.

O Sr. Leathern declarou em seu tom arrastado e pedante:

— Creio que todos nós aprovamos sem restrições a sugestão de Sir George.

Quanto a mim, concordo plenamente.

— Eu também — ajuntou Evan Llewelly n.

A Sra. Rustington olhou para Lady Marroway que fez um gesto de

assentimento. As duas retiraram-se para trás do biombo acompanhadas pela

lacrimejante Eve.

Um garçom bateu à porta e recebeu ordens de voltar mais tarde.

Cinco minutos depois, oito pessoas entreolhavam-se incrédulas.

A Estrela da Manhã evolara-se no ar.

O Sr. Parke Py ne olhou pensativo para o rosto agitado do jovem à sua frente.

— Sem dúvida o senhor é galês, Sr. Llewelly n.

— O que tem isso a ver com o resto?

O Sr. Parker Py ne abanou uma das mãos grandes e bem cuidadas.

— Nada, eu sei. Mas me interesso muitíssimo pela classificação das reações

emocionais dos diversos tipos raciais. É só isso. Mas voltemos ao seu problema.

— Na realidade, nem sei por que vim procurá-lo — disse Evan com um ar

abatido abrindo e fechando nervosamente as mãos. Não olhava para o Sr. Parker

Py ne e o escrutínio daquele cavalheiro parecia fazê-lo sentir-se inconfortável.

— Não sei por que vim procurá-lo — repetiu. — Mas que diabos eu podia

fazer? E a quem recorrer? É essa minha impotência que me está matando... Vi o

seu anúncio e lembrei-me de que um amigo certa vez disse-me que o senhor

obtinha resultados. E... bem... aqui estou. Talvez tenha sido tolice minha. O meu é

o tipo de problema a respeito do qual ninguém pode fazer nada.

— Nada disso — discordou o Sr. Parker Py ne. — O senhor procurou a pessoa

certa. Sou um especialista em infelicidade, e este caso obviamente provocou-lhe

grande sofrimento. Tem certeza de que os fatos se passaram exatamente como o

senhor os descreveu?

— Acho que não me esqueci de nada. O Sr. Pointz mostrou o brilhante que

passou de mão em mão, aquela desastrada garota americana prendeu-o no fecho

de sua ridícula carteira de noite e quando fomos examiná-la, a pedra

desaparecera. Não estava em poder de nenhum dos presentes, e até o velho

Pointz foi revistado, sugestão que partiu dele mesmo. Posso jurar que não estava

em parte alguma da sala. E ninguém saiu do reservado...

— Nem, por exemplo, os garçons? — perguntou o Sr. Parker Py ne.

Llewelly n sacudiu a cabeça.

— Eles saíram antes que garota pusesse as mãos na pedra, e depois Pointz

trancou a porta a chave para que não fôssemos interrompidos. Não, foi um de

nós.—

Certamente é o que parece — replicou pensativo o Sr. Parker Py ne.

— Aquele maldito vespertino! — exclamou Llewelly n com amargura. — Vi

quando a idéia lhes ocorreu... Aquela era a única possibilidade...

— Conte-me exatamente o que aconteceu.

— Foi muito simples. Abri a janela, chamei o jornaleiro com um assobio,

joguei-lhe uma moeda e ele atirou-me o jornal. Como vê, é a única maneira

pela qual o brilhante poderia ter saído da sala: eu o teria jogado a um cúmplice

que estava embaixo, na calçada, à minha espera.

— Não é a única forma possível — replicou o Sr. Parker Py ne.

— Que outra hipótese sugere o senhor?

— Se não o jogou a um cúmplice, então deve ter havido outra maneira.

— Ah, compreendo. Esperava que fosse sugerir algo mais concreto do que

isso. Bem, apenas posso afirmar que eu não o joguei para fora. Mas não espero

que o senhor ou os demais me acreditem.

— Mas eu acredito — disse o Sr. Parker Py ne.

— Acredita? Por quê?

— O senhor não é um tipo criminoso. Isto é, não é do tipo que roubaria joias.

Naturalmente existem crimes que o senhor poderia cometer, mas não vamos

entrar nesse assunto. De qualquer forma, não o vejo como o ladrão da Estrela da

Manhã.

— Mas os demais veem — retrucou Evan com amargura.

— Compreendo — disse o Sr. Parker Py ne.

— Eles me olharam de uma forma esquisita. Marroway pegou o jornal e

lançou um olhar à rua. Não disse nada, mas Pointz entendeu imediatamente!

Pude ver claramente o que estava pensando. Mas não me acusaram

abertamente, e isso é que é o diabo.

O Sr. Parker Py ne fez um gesto de assentimento.

— É pior ainda — disse ele.

— Sim. É a suspeita. Um camarada procurou-me para fazer-me umas

perguntas, apenas uma investigação rotineira — disse ele. — Um desses policiais

de gabinete, de terno e colete. Usou de muito tato, não fez nenhuma alusão ao

roubo. Só se mostrou interessado no fato de que eu repentinamente, após estar

reconhecidamente quebrado, estava esbanjando dinheiro.

— E ele tinha razão?

— Sim, tive sorte nas corridas de cavalo. Infelizmente fiz as apostas no prado,

e não posso provar a origem do dinheiro. Eles também não podem provar o

contrário, naturalmente, mas é a espécie de história fácil que alguém inventaria

se quisesse esconder a procedência do seu dinheiro.

— Concordo. Mas será necessário muito mais do que isso para um processo.

— Ora, não estou com medo de ser preso e levado a julgamento. De certa

forma seria até melhor, eu saberia onde estava. O horrível é que todas aquelas

pessoas acreditam que eu a roubei.

— Alguém em particular?

— O que quer dizer?

— É só uma idéia, nada mais... — disse o Sr. Parker Py ne abanando a sua mão

poderosa. — Mas é uma determinada pessoa que o está incomodando

particularmente, não é? A Sra. Rustington, quem sabe?

O rosto moreno de Llewelly n enrubesceu.

— Por que logo ela?

— Ora, meu caro senhor... É óbvio que existe alguém cujas boas graças o

senhor deseja muito conservar, provavelmente uma dama. E que mulheres

estavam presentes? Uma adolescente americana? Lady Marroway ? Mas o

senhor provavelmente não desceria na estima de Lady Marroway se tivesse

dado tal golpe. Já ouvi falar nela. Então é claro que só pode ser a Sra.Rustington.

Com um esforço Llewelly n falou:

— Ela... ela teve uma experiência bastante infeliz. O marido era um patife

sem-vergonha e ela perdeu a confiança nas pessoas. Se acreditar que...

O rapaz teve dificuldade em continuar.

— Entendo — disse o Sr. Parker Py ne. — Vejo que o problema é vital. Precisa

ser esclarecido.

Evan soltou uma curta gargalhada.

— É muito fácil de dizer.

— E igualmente fácil de fazer — replicou o Sr. Parker Py ne.

— Acha?

— Sim, o problema está bem claro, podemos afastar muitas possibilidades e a

resposta deve ser simplíssima. Na realidade já estou tendo um vislumbre...

Llewelly n fitou-o com incredulidade.

O Sr. Parker Py ne empurrou um bloco em sua direção e ofereceu-lhe uma

caneta.

— Talvez me possa fornecer uma boa descrição do grupo.

— Já não lhe dei uma idéia?

— Quero as características pessoais, cor de cabelo e coisas assim.

— Mas, Sr. Parker Py ne, o que tem isso a ver com o caso?

— Muito, meu jovem, muito.

Ainda incrédulo, Evan fez uma breve descrição dos sinais externos de cada

membro do grupo.

O Sr. Parker Py ne acrescentou umas duas notas, colocou o bloco de lado e

disse:

— Excelente! Ah, se não me engano, disse-me que na confusão um copo de

vinho quebrou-se.

Evan encarou-o perplexo.

— Sim, caiu da mesa e foi pisado.

— Estilhaços de vidro são muito perigosos — comentou o homem mais velho.

— De quem era o copo?

— Acho que era da garota, Eve.

— Ah! E quem estava sentado ao lado dela?

— Sir George Marroway.

— Não viu quem derrubou o copo?

— Receio que não. É importante?

— Realmente, não. Foi uma pergunta supérflua. Bem — disse o Sr. Parker

Py ne levantando-se. — Uma boa tarde, Sr. Llewelly n. Quer voltar daqui a três

dias? Penso que então tudo estará satisfatoriamente resolvido.

— Está brincando, Sr. Parker Py ne?

— Nunca brinco em questões profissionais, meu caro senhor. Isto provocaria a

desconfiança de meus clientes. Sexta feira às 11h30min, está bem? Obrigado.

Na sexta-feira Evan entrou no escritório do Sr. Parker Py ne num alvoroço de

sentimentos, dividido entre a esperança e o ceticismo.

O Sr. Parker Py ne recebeu-o com um amplo sorriso.

— Bom-dia, Sr. Llewelly n. Sente-se. Quer um cigarro? — Evan declinou da

oferta.

— Tudo bem? — perguntou.

— Não podia ser melhor — retrucou o seu interlocutor. — A polícia prendeu a

quadrilha ontem à noite.

— Quadrilha? Que quadrilha?

— A quadrilha dos Amalfi. Pensei imediatamente neles quando me contou a

sua história. Reconheci os seus métodos e quando descreveu os convidados...

Bem, não me restou nenhuma dúvida.

— Quem faz parte dessa quadrilha?

— O pai, um filho e a nora, isto é, se é que Pietro e Maria são mesmo casados,

o que alguns duvidam.

— Não compreendo.

— É bastante simples. A origem e o nome da família são italianos, embora o

velho Amalfi tenha nascido na América. Repetem geralmente os mesmos

métodos. O velho representa o papel de um homem de negócios e trava relações

com algum vulto proeminente do negócio de jóias em algum país europeu. Aí

aplicam o golpe. Eles estavam deliberadamente atrás da Estrela da Manhã. A

pequena idiossincrasia do Sr. Pointz era bem conhecida no seu meio. Maria

Amalfi sempre faz o papel da filha. É uma criatura surpreendente, tem no

mínimo vinte e sete anos e quase sempre representa o papel de uma garota de

dezesseis.

— Está falando em Eve?

Evan estava de boca aberta.

— Exatamente. O terceiro membro da quadrilha arranjou um biscate como

garçom no Roy al George. Era época de férias e eles estavam precisando de

mãos extras. Talvez ele tenha até subornado algum membro da equipe

permanente para não comparecer ao serviço. O cenário está preparado. Eve

desafia o velho Pointz e ele aceita o repto e mostra o brilhante aos convidados

como fizera na véspera. Os garçons entram na sala e o velho Leathern apoderase

da pedra. Quando o grupo de garçons deixa a sala, o brilhante os acompanha

preso com um pedaço de chiclete debaixo do prato que Pietro leva consigo. Tão

simples!

— Mas eu vi o brilhante depois disso!

— Não, não. Viu uma imitação suficientemente boa para enganar um

observador casual. O senhor mesmo me disse que Stein mal olhou para a pedra.

Eve deixa-a cair, derruba um copo, e pisa com força nos vidros e na pedra.

Desaparece miraculosamente o brilhante! Tanto Eve como Leathern podem ser

revistados à vontade.

— Bem... eu... — Evan sacudiu a cabeça sem encontrar palavras. — O senhor

disse ter reconhecido a quadrilha pela minha descrição. Eles já deram esse golpe

antes?

— Não com os mesmos detalhes, mas era o seu estilo. Naturalmente foi a

garota Eve quem atraiu primeiro a minha atenção.

— Por quê? Eu não suspeitei dela. Ninguém suspeitou. Ela parecia tão... tão

criança!

— Aí reside justamente o gênio de Maria Amalfi. Ela parece mais acriançada

do que qualquer criança. E a plasticina! Aparentemente a aposta surgiu

espontaneamente, e contudo a jovem tinha à mão um bocado de plasticina. Isso

me faz pensar em premeditação. Minhas suspeitas caíram imediatamente sobre

ela.Llewelly n levantou-se.

— Bem, Sr. Parker Py ne, minha dívida com o senhor não tem limites.

— O que me interessa é a classificação dos tipos criminosos — murmurou o

Sr. Parker Py ne.

— O senhor enviar-me-á a conta...

— Meus honorários serão muito razoáveis — disse o outro. — Não farão um

rombo muito grande nos seus lucros... equestres. Mesmo assim, meu jovem, em

seu lugar deixaria de lado os cavalos no futuro. São animais muito incertos.

— Tem razão — anuiu Evan, e apertando a mão do Sr. Parker Py ne deixou o

escritório.

Chamou um táxi e deu o endereço de Janet Rustington.

No seu estado de espírito triunfante sentia-se capaz de superar todos os

obstáculos.

Boa Leitura!




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