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RESENHA | Assassinato no campo de golfe, Agatha Christie
Voltar ao início é uma experiência interessante.
Descobri Agatha Christie em 2003, e o primeiro título da autora a ser marcado na minha carteirinha da biblioteca do colégio foi Assassinato no Campo de Golfe. Li em poucos dias, arregalei os olhos quando Hercule Poirot revelou o culpado, surtei com a longa e detalhada explicação do detetive, a quem nenhum detalhe, por mínimo que fosse, passara despercebido. Perdi a conta de quantos livros da autora conhecida como a Rainha do Crime li desde então (mentira: foram 58). Com o tempo, o sentimento de espanto com os desfechos imprevisíveis criados pela inglesa foi sendo substituído por algo diferente, mas não menos agradável: um apreço pela técnica, pela perícia com que estas histórias são estruturadas. Foi com essa mentalidade que revisitei Assassinato no Campo de Golfe 14 anos depois, desta vez numa caprichada edição da Globo Livros.
No livro, lançado em 1923, Hercule Poirot e seu fiel amigo Arthur Hastings (narrador da aventura) embarcam para a França, atendendo ao chamado do milionário monsieur Renauld. Em carta endereçada ao detetive belga, o homem pediu ajuda, declarando que sua vida estava em perigo. Ao chegarem à Villa Geneviève, residência do cliente, os dois descobrem que Renauld fora assassinado naquela madrugada, apunhalado pelas costas num campo de golfe próximo. Ao lado do corpo, uma cova aberta recentemente. Nada mais natural que Poirot e Hastings se envolverem na investigação do caso.
Assassinato no Campo de Golfe é um romance policial clássico, com todos os elementos que poderíamos esperar de um. Tudo é carregado de uma atmosfera misteriosa, todos estão sob suspeita. Os oficiais da polícia francesa incumbidos do caso estão constantemente boquiabertos diante dos bizarros acontecimentos e de cada nova e desconcertante pista encontrada. Os testemunhos dos familiares de Renauld e dos empregados da casa por si só soam suspeitos, e sobram lacunas na vida pregressa de quase todos os personagens. Os acontecimentos são encenados de modo a enfatizar a estranheza do que está em curso.
É um arranjo que conta com certa artificialidade, mas esta faz parte da lógica de construção destas histórias. Agatha Christie e tantos outros autores da Era de Ouro propunham jogos, dispunham as peças embaralhadas e davam ao leitor e ao detetive as mesmas chances de organizá-las. Esse caráter de desafio é o que torna Assassinato no Campo de Golfe e outros livros semelhantes sobretudo divertidos, pois impulsionam o leitor a desejar o desfecho mais do que qualquer outro ingrediente na narrativa.
Não é surpresa, portanto, que os personagens não sejam tão bem desenvolvidos assim, que certos diálogos soem exageradamente dramáticos ou artificiais, que sejam inúmeros os momentos em que Hastings se espante diante do brilhantismo de Poirot (e de sua própria ignorância). Estes componentes da narrativa são secundários, menores em relação à trama; esta, sim, é o centro da obra. Desde que o enredo funcione, as demais falhas são perdoáveis, pois nunca houve um grande investimento nas demais áreas.
Este não é o ideal, é claro: em qualquer obra literária, a trama deve funcionar, os personagens devem ser críveis, os diálogos, plausíveis, enfim, deve haver equilíbrio. A própria Agatha Christie o demonstra em diversos outros trabalhos – E Não Sobrou Nenhum, A Mansão Hollow, Assassinato na Casa do Pastor, Nêmesis, A Casa Torta, Os Cinco Porquinhos, para citar alguns exemplos. Mas, infelizmente, não é o caso aqui. Talvez a explicação esteja na inexperiência da própria autora, já que estamos falando de seu terceiro livro, mas, seja qual for o motivo, parece-me inegável que Assassinato no Campo de Golfe sofre com personagens rasos, melodrama desnecessário e excessos na representação da genialidade de Poirot.
Mas o entretenimento está mesmo na investigação dos inusitados acontecimentos ocorridos em Villa Geneviève, e nisso o livro é exemplar. O cenário desorganizado vai aos poucos tomando forma a partir do olhar apurado de Poirot, pistas pequenas mostram-se muito mais significativas do que se pensava e os suspeitos mais improváveis vão ganhando contornos cada vez mais soturnos. O que nunca faltou à Agatha Christie foi habilidade para jogar com a percepção dos leitores, deixando-os no escuro, só para, ao final, revelar que a verdade sempre esteve às vistas de todos. É incrível constatar, tantos anos depois, como o mistério ainda funciona bem.
Se por um lado minha segunda experiência com Assassinato no Campo de Golfe foi bem menos apaixonada que a primeira, também me permitiu perceber o que foi tão fascinante naquele primeiro contato, e acredito que possa fascinar outros leitores: a engenharia da trama, a técnica com que a autora segue enganando milhões de pessoas. Agatha Christie sempre vale a pena.